Três vezes que você achou que era ciência, mas era marketing

Muito do que repetimos ao longo da vida pode ter sido criado apenas com o intuito de vender o produto de uma marca. Ou você ainda acredita que o café da manhã é a refeição mais importante do dia?

Muita empresas relacionam o conceito de marketing apenas às vendas e à propaganda, mas será que é só isso mesmo?

O marketing é a principal ferramenta usada para alavancar o crescimento das empresas, fidelizar clientes e alcançar a rentabilidade do negócio, pois dá um direcionamento à empresa por meio de suas análises e pesquisas oferecendo um produto/serviço ideal ao mercado (e não um mercado ideal ao produto/serviço).

"Marketing é um processo social e gerencial pelo qual indivíduos ou grupos obtêm o que necessitam e desejam através da criação, oferta e troca de produtos de valor com outros"

Acontece que, ao apresentar toda essa oferta sedutora para o público o marketing pode acabar sendo confundido com ciência e criando “verdades” inquestionáveis.

Veja a seguir três vezes em que você achou que era ciência, mas era campanha de marketing.

1. O diamante é raro, por isso é caro

De Beers

Você já deve ter se referido ao diamante como uma joia preciosa, cara e rara, mas eu sinto te contar que não é bem assim.

O diamante, embora descoberto pela primeira vez na Índia no século 4 a.C, tornou-se uma mercadoria muito valiosa em 1800, quando as mulheres europeias começaram a usá-lo em todos os eventos sociais importantes.

Uma fazenda onde os diamantes foram descobertos pertencia a Diederik e Johannes de Beer. Esta fazenda foi comprada (à força) por Cecil Rhodes, que fundou a empresa de mineração comercial De Beers em 1871.

Naquela época novas minas foram sendo descobertas e os financistas europeus ficaram com medo de que esse aumento pudesse resultar na diminuição de valor do diamante. Então o que eles fizeram? Em 1888, a De Beers tornou-se uma instituição fundida (cartel) que controlava a maior parte da produção e distribuição de diamantes ao mesmo tempo em que perpetuava a sua ilusão de escassez. Essa ilusão os ajudou a estabilizar os preços da gema.

Quem domina a mineração e o mercado de diamantes no mundo é a De Beers, que regula a oferta do mineral para não baixar o preço e continuar dando a sensação de escassez.

O falso gatilho de escassez

Ao contrário do ouro, da prata e etc., os preços do diamante não dependiam das condições econômicas e continuavam subindo a cada ano. Mas a verdade é que diamantes não são raros. Em comparação com o ouro, a disponibilidade de diamantes é quase 40 vezes maior no nosso planeta.

O tempo passou e chegamos na década de 30 onde os diamantes não são vistos como objetos de desejo, o que resultou numa queda de 80% nas vendas.

Foi aí que a De Beers contratou a agência de marketing N. W. Ayer para criar uma campanha que valorizasse os diamantes. A agência pesquisou o público e descobriu que as mulheres simplesmente estavam interessadas em artigos mais modernos que uma simples joia. O que eles decidiram fazer sobre isso? Inundar os meios de comunicação da época, de forma direta e subliminar, com diamantes.

A De Beers cobriu as estrelas da época, como Marilyn Monroe, em diamantes nas festas do Oscar, patrocinou filmes, jornais e revistas. Um dos anúncios dizia aos homens que as mulheres de suas vidas mereciam que eles investissem um mês de salário no anel para fazer o pedido de noivado. E funcionou!

A indústria se beneficiou do efeito de rede que criou a ilusão de que o diamante era uma joia muito rara e enganou até especuladores que, na década de 1970, compraram diamantes como proteção contra inflação variável e condições de recessão.

A frase "Um diamante é para sempre" foi escolhido como slogan do século

Em 1999, a frase “Um diamante é para sempre” foi escolhida como slogan do século e nos EUA atualmente 80% das mulheres recebem anéis de diamante quando são pedidas em casamento.

2. "O café da manhã é a refeição mais importante do dia"

Kellogg's

Você já deve ter ouvido que não pode sair de casa sem tomar o café da manhã, afinal, ele é a refeição mais importante do dia. É uma frase tão onipresente que chega a ser quase clichê. Mas você sabia que essa informação não foi fruto de nenhum artigo científico?

Mas o café da manhã nem sempre foi uma refeição tão comentada. Heather Arndt Anderson, autora de Breakfast: A History , diz que “na verdade, era social e moralmente desaprovado tomar o café da manhã até por volta do século 17, com a reforma da igreja.” Anderson diz também que o gosto da rainha Elizabeth por esta refeição ajudou a aumentar sua popularidade entre os europeus.

Mas qual foi a origem do movimento pró-café da manhã que nos fez acreditar que comer nosso pão de sal e tomar nosso cafezinho pela manhã era tão importante?

"O café da manhã é a refeição mais importante do dia" nada mais é do que um slogan de marketing

Uma estratégia para vender cereais matinais

“O café da manhã é a refeição mais importante do dia” nada mais é do que um slogan de marketing. O ditado é amplamente ligado ao gênio dos cereais Dr. John Harvey Kellogg e ao companheiro James Caleb Jackson e seus esforços para promover cereais matinais.

Mas eles não foram os primeiros a dizer isso. O Daily Telegraph credita à nutricionista Lenna Cooper o uso dessa frase em um artigo de 1917 para a revista Good Health, que foi publicada por um sanatório de Michigan dirigido por Kellogg. E isso claramente causou impacto nos consumidores.

Evidenciar a importância do café da manhã fez com que a Kellogg's vendesse mais cereais matinais

Um dos pacientes de Kellogg no sanatório era o vendedor Charles M. Post, que gostou tanto de seus cereais Kellogg’s que se inspirou a lançar seu próprio império de cereais , começando com nozes de uva. No final das contas, não foram os benefícios espirituais que levaram à popularidade do cereal como alimento para o café da manhã, ou mesmo os benefícios para a saúde – a real vantagem do cereal é a sua conveniência.

Ao longo do dia, a pessoa precisa consumir um mínimo de calorias, vitaminas, fibras. Não importa o horário

Muitos cereais matinais tinham que ser cozidos, mas os mais bem-sucedidos eram aqueles que podiam ser saboreados sem tempo de preparação. Desde então, os fabricantes têm tentado impulsionar seus produtos em um mercado lotado, tornando-os mais doces e fantasiosos, e hoje muitos cereais são tão ricos em açúcar e carboidratos que podem acabar mandando você de volta ao médico.

3. Mamadeira de leite condensado

Leite Moça

Talvez isso não faça o mínimo sentido pra você, jovem millennial e GenZ, mas para as gerações anteriores tomar mamadeiras de leite condensado diariamente era não só tudo bem, como recomendado pelos médicos.

“O Leite Condensado marca Moça pode ser usado na falta ou insuficiência do leite materno, por sua composição constante e fácil digestão. Lembre-se, dando-o a seu filho, da confiança que inspira um alimento que tem ajudado a criar, sãs e robustas, milhões e milhões de crianças em todo o mundo” era o que dizia o anúncio publicado em 1949.

O anúncio se referia à marca que seria sinônimo do ingrediente no Brasil, o Leite Moça, mas, bem antes da chegada dela ao país, o leite condensado já era comercializado como o substituto vitaminado, mais durável e supostamente mais higiênico – pois era condicionado em latas fechadas – do leite fresco, que ainda saía das vacas e cabras das pequenas propriedades direto para as garrafas entregues em casa (onde não havia geladeira para que durasse mais do que algumas horas).

A lógica era mais ou menos assim: por serem industrializados, acreditava-se que os ingredientes continham menos impurezas do que aqueles produzidos à antiga moda artesanal, em condições desconhecidas ou muitas vezes distantes das regras de higiene que começavam a ser impostas.

O crescimento das propagandas e da imprensa no início do século 20 contribuía para que, cada vez mais, as latas de produtos como o leite condensado chegassem ao conhecimento das mulheres, então responsáveis pela alimentação em casa.

Ao lado dos industrializados, o açúcar também passava a ser vendido nos anúncios publicitários como um alimento indispensável à saúde, principalmente das crianças, que, com uma dieta rica dele, teriam mais energia e ficariam mais robustas e coradas. Inclusive, esse seria o mote das propagandas do adocicado ingrediente até praticamente o fim do século 20.

Nos livrinhos culinários lançados pela União (aquela marca de açúcar, lembra?) a partir dos anos 1960, esse discurso, afirmado por médicos, permeava as páginas de receitas.

Homenagem ao açúcar em meio às receitas do primeiro livrinho da União, no início dos anos 1960

Nascimento do brigadeiro

O leite condensado reunia, então, três dos principais “sonhos” para a nutrição das crianças de praticamente todo o século 20: uma lata asséptica, um conteúdo industrializado e muito açúcar. Nas vendinhas, mesmo antes da invenção dos supermercados, ele já aparecia nas prateleiras ao lado de outros enlatados, um deles o chocolate em pó.

Não demoraria muito para a “moça” encontrar o Toddy, e, juntos, na panela, darem origem a um dos docinhos mais conhecidos do Brasil.

Polêmica na Sociedade Brasileira de Pediatria

Em 2020, a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) e a Nestlé criaram o Programa Jovens Pediatras (J.Pedia), iniciativa global presente em outros países da América, com o objetivo de ampliar a qualificação dos profissionais da área médica.

Organizações internacionais de promoção da amamentação enviaram cartas à Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) expressando preocupação e repúdio sobre o anúncio de parceria com a empresa multinacional Nestlé.

Na carta, dirigida à presidente da SBP, dra Luciana Rodrigues Silva, a organização relembra que o Brasil é alinhado a Organização Mundial de Saúde, que adotou em maio de 2016 o Guia sobre a promoção adequada de alimentos infantis para lactantes e crianças pequenas que convoca empresas, profissionais, sistemas de saúde e associações de profissionais, como a SBP, a evitar os conflitos de interesse.

Ultraprocessados são prejudiciais

“Os alimentos produzidos e vendidos pela Nestlé são quase sempre ultraprocessados (UPF) ​​e, aliás, a evidência que o consumo de UPF é prejudicial vem do Brasil. Portanto, ingressar em uma associação como esta é prejudicial para a saúde infantil”, afirma trecho da carta. De acordo com o Guia Alimentar para Crianças Brasileiras Menores de 2 anos, alimentos ultraprocessados não devem ser oferecidos às crianças e devem ser evitados por adultos.

“Esse material coloca o composto numa posição quase igual à da fórmula e eles sabem que não é. Teoricamente vai ter os mesmos minerais e nutrientes, mas todos eles de menor qualidade. E vai ter também açúcar e espessantes. E com embalagens muito semelhantes”, adverte Ana Carolina Feldenheimer, professora do Departamento de Nutrição Social da Uerj e que fez parte do grupo técnico responsável pelo guia para as crianças. “A Sociedade de Pediatria está ratificando um produto porque ele tem nutrientes, como se fosse um alimento que pudesse entrar para complementar. Mas a gente discutiu muito isso no guia e chegou-se à conclusão de que não deve ser consumido.”

O poder do marketing

Além dessas existem muitas outras campanhas que foram tão bem sucedidas que acabaram fazendo parte das nossas crenças populares por muito tempo. Teve a Coca-Cola se autodenominando um super tônico para o cérebro e até mesmo a indústria de laticínios estimulando o consumo de leite e derivados por adultos através da iniciativa #BebaMaisLeite.

Esse é o poder que as marcas exercem sobre nós. Hoje, mais do que nunca, estamos diante de um cenário que cobra que marcas gerem impactos positivos na sociedade. Cada vez mais os consumidores mostram que esperam que as marcas se preocupem com o bem-estar do cliente e não apenas com o seu dinheiro. Uma marca que pensa apenas em si mesma e em alavancar suas vendas não se sustenta mais.

Conhece alguma outra campanha de marketing que virou verdade na mente das pessoas? Deixa aí nos comentários 🙂

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Itamara Ferreira
Designer, criadora do Leiautar e especialista em diálogos delirantes. Adora ouvir pessoas apaixonadas pelo que fazem e acredita que o design está em tudo e é para todos.

13 comentários

  1. F*da-se! Vou continuar tomando café da manhã… Só porque eu sou cringe

  2. Rapaz, imagina só como devia ser o recheio das fraldas dessas crianças tomando mamadeira de leite condensado. Jesus! o.O

  3. Que artigo incrivel Ita!!
    Eu nunca entendi tanto sobre o marketing como agora

  4. Uau, que interessante. Não sabia. Irei com certeza rever meus conceitos. Parabéns pelo artigo.

  5. Pode não ser a refeição mais importante do dia mas eu não fico sem haha, amo meu café da manhã

  6. Ai, Ita! To tão mais tranquila com meus hábitos alimentares 💖

  7. Tô com pena da saúde mental do Ben Harper quando descobrir que Diamonds on the Inside perdeu um pouco de valor.

    • Na verdade, se tem uma coisa que não acontece com os Diamantes é perder valor. Hoje a ciência já descobriu como fazer diamantes em laboratório, ficam idênticos ao natural e mesmo assim a indústria da pedra segue firme e forte.

  8. Conteúdo mais que relevante! Fiz questão de indicar esse artigo e o conteúdo do Leiautar no fórum de discursão da faculdade (IESB) de marketing, aqui de Brasília.
    Gerar vendas e fidelidade com os clientes é extremamente importante, mas vale a reflexão: “a preço de que ou quem?”. Essa criação das propagandas que: geram gatilhos de escassez e exclusão são muito complexos no que se refere ao impacto de consumo.
    Com isso, tornar os anúncios/publicidades atrativos e alinhados com o posicionamento das marcas está se tornado cada vez mais importante. Principalmente para não gerar uma enxurrada de informações que não geram um conhecimento, no fim das contas.

    Muito obrigada por compartilhar seus saberes aqui Ita!

  9. Amei o artigo.

    Estou chocada com o açúcar e leite condensado. Mas me lembro que li algo sobre o mesmo acontecendo com o óleo de cozinha substituindo a banha de porco no passado com uma ajuda de marketing.

    Sobre o diamante, eu sempre achei que era caro pois era o mais “duro” ou “resistente” entre as pedras preciosas.

  10. Voltei, fiquei fritando com esse artigo… 



    Como você bem colocou, queremos marcas mais comprometidas com os discursos e seus comportamento. 
Em outro ponto, para mim, acaba fica aquele fundinho de questionamento: teria um melhor caminho a ser seguido por meio da entrega com propósito? 

    Me coloco em quanto empresa pequena, e muitas vezes não consigo oferecer produtos que fariam meu lucro ser maior, mas que não necessariamente ira agregar para o consumidor final do meu cliente. Só que quando penso em outros serviços/produtos nem sempre consigo ver com clareza esse caminho.
    
Fico nessa de como usar um marketing como uma ferramenta de venda e conexão, sem cair em gatilhos que geram impactos ou crenças ruins.
    Mesmo que isso seja muito onírico e quase contra capitalista kkkk

  11. E eu lendo o artigo e tomando enquanto tomo meu café da manhã. u.u

    Mas é bem interessante compreender a importância da legislação para mitigar campanhas com benefícios não comprovados de produtos, e que poderia ser mais presente hoje nos diversos “gatilhos” utilizados em produtos digitais que geram crenças em diversos públicos.

    Por fim um questionamento: açaí carregado de leite ninho é uma bomba? haha

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